
A publicação do meu primeiro artigo na Jovem Pan Alagoas coincidiu com o dia em que recebi a notícia do falecimento de uma senhora de 98 anos que me incentivava a escrever. Ao rever os e-mails que trocamos, deparei-me com o seguinte trecho, no qual ela comentava generosamente sobre um artigo que eu havia escrito sobre o Dia das Mães:
“ADOREI seu artigo e como você escreve com leveza assunto tão profundo como é descrever o ser humano que se transforma em MÃE!!! Dando a você o super cargo de PAI. O seu artigo é sem retoques e você tem imenso talento para escrever, continue. Imprimi o seu artigo e sorte dos alagoanos que contam com um cronista como você que viaja e pode lhes transmitir fatos, fotos e os diferentes constumes de outros povos, em sua maioria tão diferentes de nós brasileiros. Aqui estou sempre às ordens e dos seus e agradecendo a honra de me escrever, comunicar-se com esta velhota que dentro de uns poucos dias, DEUS e a Virgem mediante, vai fazer 88 anos bem vividos e felizes. Muitos carinhos para os três da amiga, Laurita (Mourão de Irazabal)”
Escrevo estas linhas em um trem, nos Países Baixos, pensando em atender à sugestão de minha amiga ao escrever sobre a influência desse pequeno país na história do Brasil, especialmente na região norte de Alagoas. Contudo, decidi dedicar este artigo não à transmissão de fatos e costumes de uma cultura, mas a você, Laurita, que, aos quase 100 anos, foi a mulher mais moderna que já conheci.
Imagino que, ao fazer referência a uma idosa de quase um século, o leitor possa pensar em alguém que requer cuidado paciente nas palavras e um trato quase condescendente, por se tratar de uma pessoa que viveu em um passado remoto e cujo intelecto já estaria debilitado. Foi exatamente esse o sentimento que tive antes de conhecer Laurita Mourão.
Por ser bastante curioso pela história do Brasil, fiquei encantado ao saber que a avó de uma grande amiga era filha do General Olímpio Mourão, figura diretamente responsável por mudar o destino do nosso país em duas ocasiões. Por isso, quando fomos convidados a visitar a casa de Laurita pela primeira vez, esperava extrair daquela senhora algum segredo ou confidência sobre “o Mourão”, como ela se referia ao próprio pai.
A chegada ao apartamento antigo na Avenida Atlântica, em Copacabana, foi como uma viagem no tempo. O amplo apartamento parecia pequeno diante da quantidade de tapetes, livros, mobiliário familiar e um grande piano de cauda, cercado por paredes decoradas com obras de arte e muitas recordações fotográficas. Entre as fotos, havia uma separação distinta: de um lado, uma sequência retratava festas e momentos solenes, com figuras famosas como Pelé, músicos, atores, atrizes, políticos, diplomatas, familiares e amigos; de outro, um mosaico exclusivo de fotos de seu saudoso pai, ora fardado e marchando, ora sem camisa, usando um cocar ao lado de indígenas no Xingu, ou tocando violino para uma plateia. Tais imagens revelavam as diferentes facetas de um homem tratado como herói por uns e anti-herói por outros, mas que só ela conheceu em sua intimidade e a quem amava com devoção.
Lembro-me daquela senhora de cabelos loiros, muito bem maquiada, vestida com um colar de pérolas e uma echarpe, recebendo-nos com um abraço e um elogio: “Laura, que gente bonita!” Aquilo me deixou um pouco envergonhado, mas já me deu a certeza de que não se tratava de uma idosa comum.
Ao ouvir suas histórias, percebi rapidamente que conversava com uma mulher muito mais jovem do que aparentava. Aliás, muito mais jovem e moderna do que qualquer jovem com quem interajo hoje, uma figura tão ou mais fascinante quanto seu próprio pai.
A vida de Laurita é um enredo que nenhum cineasta poderia criticar. Da infância feliz em Copacabana à morte precoce da mãe, das aulas de anatomia e ginecologia ministradas por seu pai viúvo, ao curso de direito nos anos 1940, do casamento com um fazendeiro uruguaio, a perda de um filho por atropelamento, passando por um caso extraconjugal, o abandono do lar, o exílio com três filhos, a adoção de mais oito — sobrinhos criados por ela após a morte de sua irmã —, o trabalho em consulados, os romances e a publicação de livros, tudo isso tendo como pano de fundo a Paris do final dos anos 1960 e a Nova York das décadas de 1970 e 1980.
Enquanto vivia a liberdade feminina, criou uma família de onze pessoas com disciplina e rigor moral. Seus filhos e netos estão entre as pessoas mais educadas e interessantes que conheci. Patrícia, Fátima e Santiago, assim como seus respectivos filhos, são indivíduos transparentes, espontâneos, inteligentes e sofisticados, mas sem qualquer afetação. Eles têm o dom de nos fazer sentir bem-vindos.
Diante de tanto sucesso na criação de seus filhos, é difícil para mim conciliar os dois extremos de Laurita: disruptiva e, ao mesmo tempo, tradicional; progressista em alguns aspectos e conservadora em outros. Só ela conseguia harmonizar erotismo com uma fé inabalável em São Judas Tadeu e na Virgem Maria.
Laurita não era só verborragia quanto a causa feminista; ela foi a independência da mulher em ação. Apesar de ser uma referência de “empoderamento feminino”, não odiava os homens. Pelo contrário: era apaixonada por eles e, vejam só, defendia a liberdade masculina. Sobre seu ex-marido, ela me disse que ele tinha razão, talvez por culpa de seu “hipotálamo hedonista”.
Nestes tempos de polarização, em que famílias e grupos de amigos se dividem entre direita e esquerda, progressismo e conservadorismo, Laurita transcendia essas discussões. Sua casa acolhia desde o conservador mais reacionário até o progressista mais combativo. Contudo, o centro tíbio jamais definiria Laurita. Ela era feita de extremos que, de algum modo, se harmonizavam nela.
Sua devoção a Nossa Senhora não era hipócrita, como se buscasse indulgência por suas travessuras. Era o amor filial que a levava a acordar às cinco da manhã aos domingos para assistir ao “Maria Passa na Frente e Pisa na Cabeça da Serpente”, enquanto encenava o pisão contra o mal. Ela falava sem pudor de suas quedas, mas carregava uma fé incondicional na redenção e na vida eterna.
Não fosse Laurita filha do “General do Golpe”, seria, certamente, aclamada como heroína do movimento feminista por seu talento literário, coragem, independência e liberdade sexual. Por outro lado, não fossem seus contos escandalosos, seria celebrada pela direita como exemplo de quem criou uma família com valores cristãos, marcada por fé e alegria e coragem diante dos desafios da vida.
Poderia seguir escrevendo sobre a admiração que tenho por Laurita. Contudo, seus livros e descendentes falam por si. Quanto a mim, o pouco que convivi, me ensinou a receber bem, a cultivar uma fé inabalável, a não carregar eternamente o peso da culpa e nem a permanecer preso ao passado.
Para terminar, lembro de um costume curioso de rezar por milagre para pessoas recém falecidas. Certa vez, ao aconselhar uma amiga que estava numa situação em que precisava de um milagre, Laurita falou: “Peça a Grace Kelly, pois é santa nova e precisa mostrar serviço”. Sendo assim, Laurita, te peço bom humor, leveza e coragem para encarar a vida com fé, dignidade e pouca preocupação com a lingua do povo.
Quanto à viagem mencionada no início deste artigo, estou chegando a Maastricht para visitar a Basílica de Nossa Senhora Stella Maris. Lá, rezarei por minha família, por Alagoas e pelo Brasil. E rezando por você, Laurita, pedirei que interceda junto a Virgem para que ela passe na frente e “pise na cabeça da serpente”.
André Luís Jucá Correia de Melo
Laurita Lourdes Linhares Mourão Irazabal (1926-2025) foi uma escritora brasileira, que trabalhou no Itamaraty, onde sua vivência em diferentes países influenciou sua escrita. Filha do general Olímpio Mourão Filho, escreveu a biografia “Mourão, o General do Pijama Vermelho” (2002). Autora de romances como “À Mesa do Jantar” (1979), “Alice do Quinto Diedro” (1980) e “Incesto em Segundo Grau”, explorou temas como sexualidade, gênero e família e destacou-se por sua escrita irreverente. Faleceu em maio de 2025, aos 98 anos, deixando um legado ligado à emancipação feminina e à memória histórica brasileira. Continua viva na lembrança de seus filhos, netos e bisnetos, dois dos quais são alagoanos.
