Voltei das férias com a alma lavada pelo vento do Bósforo e os olhos repletos das contradições da Turquia. Em Istambul, os séculos se encaram de frente, e a história não dorme em paz. Basta visitar o Palácio de Topkapi e se debruçar sobre a sacada que dá para o estreito: à esquerda, o caminho para o Mar Negro, 500 km de tensão até os portos da Ucrânia e da Rússia; à direita, os Dardanelos, entrada para o mar Egeu e, além, a Grécia — vizinha, rival, herdeira comum de Bizâncio e do Império Otomano. Na bandeira vermelha que tremula ao lado da imagem de Mustafa Kemal Atatürk, o “pai dos turcos”, respira ainda o ideal de uma república moderna e laica. Mas a pergunta que paira é: ela ainda o é?
A resposta talvez esteja ali perto, em uma outra colina: a Hagia Sophia. Fundada como basílica cristã ortodoxa por Justiniano no século VI, convertida em mesquita após a conquista otomana de 1453, ela foi transformada em museu por decreto da jovem república em 1935. Atatürk entendeu que seu valor era civilizacional, universal. Em 2020, o edifício voltou a ser mesquita por ordem do presidente Erdogan. Alguns mosaicos bizantinos com imagens de Cristo e da Virgem na nave central estão agora cobertos por panos pouco discretos — um gesto simbólico, mas eloquente. Falando em gesto, um amigo fez sinal da cruz perante uma imagem cristã, tendo sido prontamente advertido por um fiscal. Se quiser saber como anda a luta pelo Estado laico na Turquia, observe a Hagia Sophia. Ela é o espelho.
Ao longo das ruas e praças, os nomes e rostos ainda reverenciam o reformador que proibiu o véu nas escolas, aboliu o califado, substituiu o alfabeto árabe pelo latino e concedeu às mulheres o direito ao voto antes mesmo de França e Itália. Mas nas universidades e redes sociais, cresce uma juventude inquieta da Geração Z, cujas manifestações recentes foram destacadas essa semana pela The Economist. Eles pedem liberdade, combate à corrupção, oportunidades reais — não apenas nostalgias neo-otomanas ou projetos autoritários mascarados de tradição.
No meio desse conflito entre passado e futuro, aprendi também sobre figuras que personificam a complexidade turca. Como Roxelana, a escrava ucraniana de cabelos cor de morango dourado (“strawberry blonde”) que se tornou esposa legítima do sultão Suleiman e ascendeu de odalık a haseki sultana (este último, título criado para a inclassificável mulher), regente do império. Seu túmulo jaz em cripta própria próxima a do marido, ambas ao lado da mesquita de Suleiman. Não a visitei, a reverenciei.
Ou outro ruivo, Barbarossa, nascido na ilha de Lesbos, o pirata que o Ocidente via com horror, mas que Istambul celebra como almirante imperial (“kapudan pasha”) heroico, sob ordens de Suleiman, com sua estátua imponente diante do Bósforo. A trajetória dele e dos irmãos é digna de filme e longe do lugar comum. As duas figuras mostram que a história não cabe em slogans nem maniqueísmos.
De volta a Maceió, trago a sensação de que a Turquia — como o Brasil — está em constante disputa por sua alma. Os direitos civis, o equilíbrio entre fé e liberdade: tudo isso está em jogo. A Turquia que vi não é apenas um destino turístico. É um alerta, uma intersecção. Que a Turquia reencontre seu caminho. Que nós também.
*Por Thiago Moura de Albuquerque Alves