Agradeço à Jovem Pan Alagoas pelo convite para esta coluna semanal, onde comentarei temas relevantes da cena internacional. Começo por uma reflexão, inspirada em um perfil publicado pela revista The New Yorker , sobre a nova presidente do México, Claudia Sheinbaum.
O título — “A presidente mexicana que enfrenta Trump” — sugere um épico geopolítico: a mulher progressista e racional desafiando o ogro norte-americano. No entanto, o conteúdo verdadeiro é outro: a exposição brutal da omissão, da apatia e do cinismo do Estado mexicano diante de sua tragédia humanitária.
O ensaio narra que, em setembro de 2024, a Guarda Nacional descobriu o Rancho Izaguirre, em Jalisco. Presos, um corpo encontrado, duas pessoas libertadas. O resto? Entregue às mães, que, com as próprias mãos, vasculharam a terra em busca dos seus filhos. Ossadas, trincheiras, indícios de fornos: um campo de extermínio operado pelo Cartel Jalisco Nova Geração. A tragédia foi também tema de reportagem da BBC, sob o título de Auschwitz mexicano.
O Ministério Público mexicano garante que não havia crematórios. A presidente Sheinbaum relativiza: disse que o local servia para “recrutamento” via anúncios no TikTok. Um campo de estagiários mortos, talvez. Enquanto isso, corta o orçamento da Comissão Nacional de Busca e nega reuniões com familiares de desaparecidos — com quem um dia marchou, bandeira em punho, no Salão Che Guevara da UNAM.
O México já teve cerca de 1.200 desaparecidos políticos na chamada Guerra Suja (1960-1970). Os desparecidos agora persistem, mas no cenário democrático. Uma mãe buscadora no México relata ter perdido a fé nas autoridades. Quando seu filho desapareceu, o país registrava cerca de 3.700 desaparecidos naquele ano de 2017. Hoje, o número acumulado ultrapassa 16.000 e impressionantes 120 mil, se contabilizados desde 2007 — vítimas de um Estado que terceiriza a violência e se esconde atrás da retórica da soberania.
O Senado, dominado pelo partido Morena, debocha bloqueando uma comissão especial. A ONU questiona. E nas praças, amontoam-se sandálias e sapatos de mães enlutadas, como epitáfios improvisados da democracia mexicana — uma imagem que lembra, dolorosamente, os sapatos de ferro às margens do Danúbio, em Budapeste.
Enquanto isso, Hollywood aplaude filmes como Zonas de Interesse, sobre o banal funcionamento de uma sociedade ao redor de um campo de extermínio. Haverá diretores mexicanos — Iñárritu, Cuarón, Del Toro — dispostos a filmar Teuchitlán?
A tragédia do México não é a perda de soberania para Washington, mas o pacto tácito com a barbárie interna. É o crime organizado governando faixas inteiras do território. E o que não se pode governar, justifica-se com pós-modernismo. Sheinbaum, doutora por Berkeley, filha de 1968, parece aplicar com zelo acadêmico as lições de Foucault e Derrida: diante das ossadas, enxerga apenas narrativas concorrentes, signos flutuantes, discursos em disputa. Baudrillard aplaudiria: a realidade foi substituída pela estética da negação.
Em julho de 2024, agentes americanos sequestraram Ismael “El Mayo” Zambada, líder do cartel de Sinaloa, sem sequer notificar o governo mexicano. Para Washington, foi apenas “procedimento policial”. Para o México, uma humilhação — mas também uma constatação: quando o Estado abdica do monopólio da força, alguém o exerce por ele.
A retórica progressista não alcança os cemitérios clandestinos. A retórica da soberania encobre a rendição à criminalidade. A retórica dos direitos humanos esbarra nas valas anônimas.
Não é Trump o centro da crise mexicana. É o México diante dos seus mortos. E a pergunta que resta é esta: Quem enfrentará os fantasmas que o México produz?
*Escrito por Thiago Moura de Albuquerque Alves.